Quinta-feira, 26 de Agosto de 2004
Quando se fala em alterações ortográficas, surgem sempre pessoas manifestando a sua oposição, em muitos casos com o entusiasmo e o fanatismo com que alguém se junta a uma cruzada ou a uma guerra de guerrilhas. Foi assim com o acordo ortográfico de 1990. Aconteceu o mesmo com alterações anteriores.
A Drª Edite Estrela mostra uma certa compreensão e tolerância por este fenómeno. Citemos um parágrafo do seu magnífico livro A Questão Ortográfica Reforma e Acordos da Língua Portuguesa: As mudanças ortográficas interferem com os hábitos de escrita de cada falante; mexem com automatismos adquiridos em anos de prática; perturbam as rotinas e geram contestação.
Seja, mas custa a perceber o exagero de certas reacções de pessoas cultas. Por exemplo, em tempos idos o académico brasileiro Carlos de Laet ridicularizou a mudança de kágado para cágado. Também em tempos que já lá vão, o escritor Teixeira de Pascoaes mostrava saudades por duas perdas que iam ocorrer. Referia-se ao desaparecimento do y em abysmo e em lyrio. Converter as duas palavras em abismo e lírio seria fazê-las perder o sentido. O y daria, segundo Pascoaes, a ideia de profundidade a abysmo e elegância a lyrio. Tudo isto parece simplesmente ridículo a pessoas do nosso tempo.
A reforma de 1911 introduziu alterações que nos parecem perfeitamente sensatas. Quem defende hoje ortografias como theatro, asthma, rheumatismo, polyphonia, christão ou archipélago? No entanto, essa reforma, que devia ter sido feita muito antes, recebeu adjectivos terríveis. Antifilosófica, inoportuna, contraproducente, selvagem e ridícula foram alguns dos impropérios com que foi mimoseada. Dir-se-ia que os promotores de tal reforma eram um bando de malfeitores bárbaros, ignorantes e inimigos da língua portuguesa, contra a qual teriam praticado horroroso crime. A história repete-se. Há poucos anos voltámos a ouvir adjectivos e críticas semelhantes.
Crime sem perdão foi a assanhada expressão usada por um crítico do acordo ortográfico de 1990, pessoa ainda relativamente jovem e de elevado nível cultural. Parece mentira, mas não é. Como é possível pessoas cultas e responsáveis dizerem tais enormidades, dignas de figurarem numa antologia do disparate?
Em futuros artigos veremos as principais críticas ao acordo ortográfico.
Quinta-feira, 19 de Agosto de 2004
Do quando falamos quando nos referimos ao acordo ortográfico? Falamos dum acordo assinado em 1990 entre os sete países de língua oficial portuguesa de então estabelecendo normas ortográficas, ou seja regras de como escrever palavras.
O acordo ortográfico esteve em banho-maria durante vários anos, mas parece que se estão a criar condições para entrar em vigor.
Neste momento a língua portuguesa tem duas ortografias: a usada no Brasil e a dos restantes países de língua portuguesa. As reformas introduzidas no Brasil em 1973 reduziram bastante as diferenças entre as duas ortografias, mas persistem importantes divergências.
Vejamos quais as principais alterações que o acordo introduzirá.
- Em Portugal, países africanos de língua oficial portuguesa e Timor
Eliminação do c e do p não pronunciados em palavras como director, acção, protecção, baptismo, adoptar e decepção, as quais passam a escrever-se diretor, ação, proteção, batismo, adotar e deceção. Parece que Marcelo Caetano se preparava para eliminar estas consoantes mudas quando a revolução do 25 de Abril pôs termo à sua governação.
- No Brasil
Desaparece o trema. Em Portugal escreve-se aguentar, arguido, frequente e tranquilo. No Brasil estas palavras escrevem-se agüentar, argüido, freqüente e tranqüilo. O trema é colocado sobre o u para indicar que esta letra é pronunciada. Em Portugal o trema não se usa desde 1945.
O ditongo ei em palavras graves nunca é acentuado graficamente. Por isso, deixa-se de usar acento em palavras como assembléia e idéia. Actualmente tais palavras não levam acento em Portugal.
-Em todos os países
É simplificado e reduzido o emprego do hífen
O ditongo oi em palavras graves não leva acento. Por isso, desaparece o acento em palavras como bóia, cóio e heróico.
Em próximos artigos continuaremos a falar deste acordo.
Quinta-feira, 12 de Agosto de 2004
Destak é o nome dum jornal de distribuição gratuita em transportes colectivos da zona de Lisboa e também em semáforos, cafés mais emblemáticos e universidades.
No mês de Maio, na sua página Brasileirão, o jornal publicou a notícia que se segue.
Os ministros da Educação da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), reunidos quarta-feira em Fortaleza, propuseram a entrada em vigor imediata do acordo ortográfico, mesmo sem a ratificação de todos os membros. Fonte do Ministério da Educação de Portugal considerou em declarações à agência Lusa que a entrada em vigor do acordo é importante para a "constituição dum espaço de ortografia, que é simultaneamente a base da política de língua no âmbito da CPLP".
Do que falavam os ministros quando se referiam ao acordo ortográfico? Em futuros artigos falaremos muito deste acordo, da sua história e do que ele significa.
Sexta-feira, 6 de Agosto de 2004
Através do Decreto-Lei 32/73, de 6 de Fevereiro de 1973, o governo de Marcelo Caetano, último primeiro-ministo antes da revolução do 25 de Abril, eliminou os acentos em palavras como pràticamente, cortêsmente, cafèzinho e avôzinho.
Se bem me lembro, esta mudança de ortografia teve efeito a partir do primeiro dia de 1974, já perto do fim do regime político de então. Caminhava 1973 para o fim quando li no extinto Diário Popular notícias da nova ortografia. Não me recordo de quaisquer objecções a esta mudança.
Li em publicações, não me lembro quais, que Marcelo tinha planos para novas alterações ortográficas, estas bem mais profundas. Tais fontes de informação eram dignas de todo o crédito. Tenho quase a certeza da verdade das suas informações. De qualquer modo, devo dá-las com alguma reserva.
Marcelo Caetano teria, segundo essas fontes, a intenção de eliminar os cês e o pês não pronunciados em palavras como óptimo ou actor, que passariam a escrever-se ótimo e ator, ortografias há muito usadas no Brasil.
Marcelo já disporia dum parecer de linguístas referente a esta supressão de consoantes mudas. Só haveria objecções por parte do Prof. Costa Pimpão, da Universidade de Coimbra.
A partir de certa altura de 1973, Marcelo começou a ter preocupações com um movimento militar que haveria de levar à sua queda em 25 de Abril de 1974. Marcelo Caetano não chegou a ter tempo de impor novas alterações ortográficas.
Ainda hoje escrevemos actuar, uma coisa bem tola, porque o c nem se lê nem abre a pronúncia do a. Que pena que Marcelo não tenha eliminado as consoantes mudas. Ter-se-ia evitado posteriormente tanta polémica estéril.
Segunda-feira, 2 de Agosto de 2004
No dia 17-8-1901 o Diário de Notícias publicou a notícia que se segue.
O movimento em favor das classes trabalhadoras vae alargando cada vez mais, realisando, ou em via de realisar, algumas das suas mais legitimas aspirações. Até na Russia o governo imperial acaba de decretar que os operarios empregados nas fabricas do estado tenham direito a uma pensão, para elles ou para suas familias. Escrevemos aspirações legitimas, e muito de proposito, porque nem todos os numeros do programma socialista nos parecem exequiveis. Uns pairam nas regiões da utopia e nunca baixarão á esphera da realidade: são sonhos de phantasias ardentes ou promessas de prophetas embusteiros; outros, então, peccam pelo seu caracter antipathico, provocador e até odiento.
Foi mantida a ortografia (naquele tempo escrevia-se orthographia) em que o artigo foi escrito.
Várias palavras deste artigo estão escritas duma maneira diferente da actual. Repare-se, por exemplo, em antipathico e esphera.
A ortografia da língua portuguesa mudou bastante nas últimas décadas em virtude de diversas reformas. Talvez não acredite mas em 1931 ainda se escrevia sciência. Quem passeie por Lisboa com atenção a placas colocadas em prédios ou por cemitérios lendo inscrições tumulares não pode deixar de notar ortografias bem diferentes da actual com o uso do ph, de th, de eles e emes dobrados, do y, etc.
Apesar disto, certas inteligências querem apresentar-nos a ortografia como algo que vem de muito longe, talvez do Sr. D. Afonso Henriques de saudosa memória, algo intocável, uma espécie de manipanso que deveríamos adorar de joelhos.
Parece incrível que um homem como o Prof. Freitas do Amaral, eminente mestre de direito, tenha dito que a ortografia é algo que se estabelece longamente ao longo dos séculos. Pelo menos no que se refere à língua portuguesa tal afirmação está bem longe da verdade.
Homens eminentes podem dizer grandes disparates. Isto tem-se visto ao longo da história. Por isso, não temos que acreditar em tudo o que dizem sumidades, líderes de opinião e elites intelectuais. Ouçamos esta gente ilustre mas pensemos pela nossa cabeça.
A ortografia duma língua tem muito de arbitrário. Não existe nenhum sistema ortográfico perfeito ou definitivo.
Domingo, 1 de Agosto de 2004
Em 1971 o governo brasileiro do Presidente Emílio Médici introduziu alterações na ortografia usada no Brasil, que é, como se sabe, diferente da de Portugal e suas ex-colónias de África e da Ásia.
Uma das alterações consistiu na eliminação do acento grave e do acento circunflexo nos moldes daquela que dois anos mais tarde Marcelo Caetano viria a introduzir em Portugal e seus domínios ultramarinos de então.
Outra alteração consistiu na quase eliminação no acento circunflexo diferencial. Antes desta alteração escrevia-se no Brasil côrte com acento para se diferenciar de corte com o aberto. Escrevia-se êsse com acento circunflexo para se distinguir de esse, nome da letra s. O acento diferencial não foi eliminado na palavra pôde.
O acento circunflexo diferencial já tinha sido abolido em Portugal em 1945 e era responsável por à volta de 70% das diferenças de ortografia entre Portugal e o Brasil.
O acento diferencial parece muito lógico. Sem ele podemos ter de descobrir pelo contexto se um e ou o é aberto ou fechado, mas obriga a pessoa a ser enciclopédica. Nêle escrevia-se assim porque existe nele com e aberto. É o nome duma antiga moeda francesa e duma variedadede de arroz na Índia. Imagine-se uma pessoa dos nossos dias a ter que saber da existência da palavra nele com e aberto para decidir sobre o uso dum acento noutra palavra.
O governo brasileiro deu às editoras de livros e publicações quatro anos para o cumprimento da lei que introduziu estas alterações.
Curiosamente esta lei do governo brasileiro apoia-se num parecer conjunto da Academia Brasileira de Letras e da Academia das Ciências de Lisboa, de 22 de Abril de 1971. As alterações ortográficas introduzidas no Brasil em 1971 e em Portugal e colónias em 1973 foram com certeza concertadas entre as autoridades dos dois países. Não houve um tratado internacional entre Portugal e Brasil, assinado com toda a solenidade e pompa, estabelecendo as alterações, mas deve ter havido acordo para medidas legislativas convergentes. Na prática houve um acordo ortográfico, que funcionou com total eficácia. Isto prova que os acordos ortográficos não estão fatalmente condenados ao fracasso.
Quem parece ter ficado muito contente, apetece dizer vingado, com a eliminação do acento diferencial foi o Ministro da Educação do Brasil de então, Jarbas Passarinho, que num exame escreveu sem acento toda com o fechado, coisa que os professores não perdoaram. O jovem Jarbas, apesar de Passarinho, tinha esquecido que existe toda com o aberto, nome dum pássaro vulgar na América do Sul. E você sabia de tal pássaro? Foi muito bem eliminado o acento diferencial. Palmas para os que dum e doutro lado do Atlantico lhe puseram merecido fim!