Segunda-feira, 14 de Novembro de 2005

Esdrúxulas com divergências (5)

Em 1986 vários linguistas do Brasil, de Portugal e dos países africanos de língua oficial portuguesa negociaram um projecto de acordo ortográfico que abolia os acentos das palavras graves ou paroxítonas e das esdrúxulas ou proparoxítonas.

Com esse acordo quase se deixava de usar acentos. As divergências entre a ortografia portuguesa e a brasileira por motivos de diferenças de timbre limitar-se-iam a um pequeno número de palavras como “bebé” e “bebê” ou “guiché” e “guichê”.

Este acordo ortográfico seria uma autêntica revolução para os nossos hábitos. Com a eliminação de acentos “fábrica” e “fabrica” passariam a ter uma só ortografia – “fabrica”. Na frase “ele trabalha numa fabrica moderna” o leitor teria de descobrir que o acento tónico de “fabrica” incidia sobre a antepenúltima sílaba. Quem lesse a frase “esta unidade industrial fabrica produtos alimentares” teria deduzir que “fabrica” era palavra grave.

Para uma pessoa com grande domínio da língua e um grande vocabulário a eliminação de acentos não traria grandes desvantagens. Mesmo assim, poderia viajar num avião ou num comboio e, de repente, encontrar um termo que não conhecia. Poderia ser, por exemplo, “alarcanacetemia”, que é um nome inventado. A pessoa poderia ficar com dúvidas quanto à sílaba tónica, o que só poderia esclarecer com um dicionário, mas podemos andar sempre com um dicionário?

O inglês praticamente escreve-se sem acentos, mas sabemos o tormento que é ler nessa língua sem um dicionário por perto. De repente, aparece uma nova palavra ou uma palavra de que esquecemos a pronúncia. Olhamos para ela e o mais certo é não fazermos ideia de qual é a sílaba tónica. Apanhamos cada surpresa! Sabemos que “famous” se pronuncia mais ou menos “feimâç”. Aparece “infamous”. Se houvesse lógica no inglês, esta palavra seria pronunciada “infeimâç”, mas, como sabemos o que a casa gasta, vamos consultar o dicionário e descobrimos que “infamous” se pronuncia “ínfâmâç”! Apetece amaldiçoar tal língua e tal ortografia.

Hoje não temos dificuldade em saber qual é a sílaba tónica de qualquer palavra.. A eliminação radical de acentos proposta pelo projecto de acordo de 1986 levaria a podermos encontrarmos na leitura palavras sem saber onde colocar o acento tónico. Poderia ser colocado na sílaba errada.

É preciso não esquecer o fraco nível cultural de grande parte dos actuais habitantes dos países de língua portuguesa. As regras ortográficas, como quaisquer outras, não podem esquecer as pessoas de carne e osso a que se aplicam. Apontou-se, com razão, que a falta de acentos conjugada com o fraco nível cultural dos falantes do português poderia levar à tendência de tornar graves palavras esdrúxulas. Por exemplo, as “análises” poderiam passar a “analises”, com acento tónico na sílaba”li”.

Que aconteceu ao tal projecto de acordo de 1986? Levantou tanta polémica que não chegou a ser ratificado por qualquer parlamento. Os negociadores tiveram de voltar a reunir-se e decidir algo de menos ambicioso. Assim nasceu o acordo de 1990.

De qualquer modo, as propostas de 1986 continuam a seduzir muitas pessoas. Quando foi apresentado o acordo de 1990, o Prof. Jacinto Nunes, da Academia das Ciências, disse que no futuro, em ocasião mais propícia, os acentos seriam eliminados.

Houve quem dissesse que se cedeu à demagogia de uns tantos que se julgam donos da língua e que se pôs de lado um bom acordo. Talvez, mas não se pode esquecer as muito precárias condições da maioria das escolas dos países africanos de língua oficial portuguesa e de Timor, em termos humanos e materiais. Em caso de dúvidas sobre a colocação do acento tónico, como as esclareceriam? Quantas dessas escolas dispõem de dicionários ou prontuários? Poucas e não será tão depressa que vão dispor desses instrumentos. São muitas vezes escolas isoladas. Um dia terão ligação à Internet, mas não será tão depressa.

Também a falta de acentos dificulta a aprendizagem de termos técnicos e científicos, frequentemente aprendidos pela leitura.

Não foi ainda este acordo ortográfico que aboliu os acentos das palavras esdrúxulas. Quem sabe se num futuro mais ou menos longínquo não estarão criadas condições para a abolição dos acentos e, então, naturalmente, as autoridades linguísticas e políticas decidir-se-ão pela sua eliminação. É uma questão de futurologia, que não é o assunto deste blogue.

João Manuel Maia Alves
publicado por João Manuel Maia Alves às 08:53
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